Brasileiros

O rock rural e o drop out de Sá, Rodrix e Guarabyra

Cultura

- Quintessência

Em álbuns inventivos como "Passado, Presente & Futuro", aqui resenhado, e "Terra", o trio de compositores ajudou a reverberar ideais da contracultura no País
Marcelo Pinheiro
Publicado em: 25/11/2017 - 02:17Alterado em: 06/12/2017 - 17:44
Zé Rodrix, Luiz Carlos e Gutemberg Guarabyra, em registro do começo dos anos 1970, período de consagração do trio. Foto: Divulgação / Odeon

Em um álbum falado, epônimo e lançado em 1966, o psicanalista Timothy Leary cunhou a expressão “turn on, tune in & drop out” (algo como “se ligue, entre em sintonia e caia fora”). No ano seguinte, tal sentença reverberou novamente, com amplitude, em um discurso proferido pelo próprio Leary, na abertura do Human Be-In, encontro que reuniu mais de 30 mil hippies no Golden Gate Park, em San Francisco. O bordão provocativo foi então adotado por jovens de todo o mundo, para resumir os ideais libertários da contracultura e a experiência transcendental propiciada pelo uso da substância cientificamente conhecida como Ácido Lisérgico Dietilamida, o famigerado LSD.

Até 1966, com o aval científico de pesquisadores como Leary, que primeiramente fez experimentos fechados com alguns de seus pacientes, o LSD foi vendido em farmácias dos Estados Unidos, com a exigência simples de uma prescrição médica.

A substância era então distribuída em todo a extensão dos EUA por laboratórios como Sandoz (liberação que, aliás, inspirou A Girl Named Sandoz, composição psicodélica da banda The Animals, ). Mas veio o chamado Verão do Amor, na transição de 1967 para 1968, e o uso de LSD fugiu de controle. Milhares de hippies, de costa a costa dos Estados Unidos, passaram a atuar como agentes multiplicadores da cultura lisérgica difundida por Leary. Situação que alardeou nas autoridades americanas a urgência de dar logo um fim às viagens tresloucadas daquela turma.

Ou não, como diria Caetano Veloso. Afinal, mesmo com a substância banida das prateleiras das farmácias, o LSD continuou a ser difundido em círculos clandestinos, por meio de laboratórios químicos caseiros e traficantes que forneciam a droga embebida em cartelas multicoloridas, em micropontos e em soluções líquidas.

Um experimento coletivo, divisor para o movimento migratório feito pelo LSD, que saiu do ambiente científico para tornar-se combustível de transe generalizado da geração Flower Power, foi tema do livro O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, clássico do Novo Jornalismo, publicado por Tom Wolfe em 1968. No catatau, o repórter, notório por seus trajes brancos, narra a sucessão de aventuras insanas vividas na estrada pelo grupo denominado Merry Prankters (em tradução livre, os "festivos gozadores").

Liderados pelo escritor Ken Kesey, autor do clássico Um Estranho no Ninho, os Pranksters se reuniram, em 1962, para dar início a experiências embrionárias de uso coletivo e recreativo de LSD em uma comunidade alternativa, sediada em uma chácara em La Honda, na Califórnia.

Dois anos mais tarde, os Pranksters empreenderam uma viagem literal, sem precedentes, estabelecendo uma geografia lisérgica no mapa dos EUA. Kesey decidiu, então, comprar um velho ônibus escolar, fabricado em 1939, e fez nele uma série de pinturas psicodélicas e adaptações, como incluir um sistema de áudio para que os músicos da trupe pudessem ali “transar” um som.

Tendo o neologismo "furthur" como itinerário (um trocadilho entre as palavras "além" e "futuro"), e municiado de muito LSD diluído em suco de laranja, Kesey caiu na estrada com os Pranksters. No volante, o escritor Neal Cassady, autor de O Primeiro Terço e inspirador do personagem Dean Moriarty de On The Road, a obra-prima de Jack Kerouac. O drop out de Kesey e seus discípulos lisérgicos tinha um propósito bem definido: cruzar o máximo de cidades norte-americanas e identificar voluntários dispostos a realizar os chamados “acid tests” (daí o “teste do ácido” no título do livro de Wolfe).

Mas o quê, raios, tudo isso tem a ver com o álbum que será abordado hoje em Quintessência?! Tudo e um pouco mais! Passado, Presente e Futuro, o LP de estreia do trio Sá, Rodrix e Guarabyra, é um retrato verde-amarelo, com certo delay histórico, do desbunde impulsionado pela recomendação de Leary para a juventude “cair fora” das convenções desgastadas da geração de seus pais e criar estatutos de seu próprio mundo.




Capa do LP "Passado, Presente, Futuro". Foto: Divulgação / Odeon 

O universo paralelo defendido por Sá, Rodrix e Guarabyra em composições como , a canção de Rodrix eternizada por , era composto de amor, valores dissociados de posse, vida contemplativa, rocks rurais, muita fraternidade, paz de espírito, paixões furtivas e a expectativa de legar à humanidade crianças de “cuca legal”.

Lançado em 1972 pela Odeon, Passado, Presente e Futuro marca o encontro de três jovens artistas experimentados e partidários das transformações culturais e comportamentais defendidas por pensadores libertários como Leary e Kesey. Eis, aí, a conexão.

Luiz Carlos Sá, carioca como Zé Rodrix, foi o primeiro do trio a se aventurar profissionalmente com música. Teve a canção gravada, em 1965, em um compacto da cantora Luli. No mesmo ano, outras três realizações abriram caminho para o compositor debutante: Pery Ribeiro interpretou , primeiro sucesso radiofônico de Sá; Nara Leão gravou ; e ele, então, formou o grupo Mensagem, com Sonia Ferreira, Marco Antonio Menezes, Paulo Tiago e Sidney Miller (este último também se tornou renomado cantor e compositor, mas seu enorme talento sucumbiu a uma depressão que o levou a cometer suicídio aos 35 anos, em 1980).

Ainda em 1965, integrando o Mensagem, que depois contaria com a presença de Luli, Sá participou do show musical Samba Pede Passagem, do Grupo Opinião. Dirigido pelo dramaturgo Vianinha, o espetáculo contou com outros nobres convidados: Baden Powell, MPB-4, Araci de Almeida, Ismael Silva e o Conjunto Época de Ouro.

Em 1966, Sá participou do I Festival Internacional da Canção com a composição , lançada, depois, em compacto. Ao lado do debutante Gutemberg Guarabyra e de Miller, participou, em 1967, do espetáculo de inauguração do Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro. Pouco antes de formar o trio com Guarabyra e Zé Rodrix, a convite de Nelson Motta, passou a integrar a equipe de criação de jingles da produtora Aquarius, ao lado de dois craques, os irmãos Paulo Sergio e Marcos Valle.

Logo após Guarabyra dar início profissional a sua carreira artística com o show de abertura do Casa Grande, ele decidiu embarcar por uma série de shows no interior da Bahia, seu Estado natal. Na volta ao Rio, no final de 1967, acompanhado do grupo Manifesto, o baiano venceu o II Festival Internacional da Canção com a composição .

A repercussão de seu talento logo o levou a assinar a produção musical de dois programas cariocas da extinta TV Tupi, o Bibi ao Vivo e o Blota Jr. Em 1969, Guarabyra venceu o Festival de Juiz de Fora (MG) com a composição , escrita a quatro mãos com Renato Correa e Danilo Caymmi, e interpretada por Evinha, irmã de Renato. Em 1971, a convite de Augusto Marzagão, Guarabyra assumiu a direção artística do festival mineiro e também foi contratado pela gravadora Odeon.

Zé Rodrix, o mais experimentado dos três, iniciou sua trajetória musical em 1966, ao formar com Ricardo Sá, David Tygel e Maurício Mendonça o grupo Momento Quatro, que chegou a gravar, no ano seguinte, um compacto simples com a canção Glória, de sua autoria.

Também em 1967, o Momento Quatro foi coadjuvante de um fato histórico, a apresentação da campeã Ponteio, no III Festival de Música Brasileira da TV Record, ao lado do autor, Edu Lobo, do Quarteto Novo e de Marília Medalha. Em 1968, foi a vez de o grupo lançar seu primeiro e único álbum, homônimo (). Com a pífia repercussão do Momento Quatro, apesar da qualidade de seu LP, Zé Rodrix partiu, em 1969, para Porto Alegre (RS), seguindo a companhia teatral GRAL e seu grupo musical Primeira Manifestação da Peste. Na capital Gaúcha, Rodrix engordou a renda atuando como professor de música e repórter do jornal Zero Hora.  

Quando voltou ao Rio de Janeiro, Rodrix formou o supergrupo Som Imaginário. Além dele, o combo reunia Wagner Tiso, Robertinho Silva, Tavito, Luiz Alves, Fredera e Laudir de Oliveira. Disputado entre os artistas mais antenados daquela virada de década, justamente por seu domínio de linguagens musicais modernas – sabiam tudo de ritmos brasileiros, mas também de jazz, de rock psicodélico, de soul, de folk-rock – o Som Imaginário foi curinga de artistas como Gal Costa, Milton Nascimento e Marcos Valle que, ao trabalhar com o grupo, em seu álbum de 1970, chegou a compor um tema em homenagem a ele, chamado .

Em 1971, a banda gravou o de três ótimos LP’s. Mas a incursão de Rodrix pelos “sons imaginários” durou pouco. Logo após o lançamento deste primeiro álbum, ele abandonou o grupo para formar o trio com Sá e Guarabyra.

Lançado pela Odeon, em 1972, Passado, Presente e Futuro flagra encontro dos mais felizes entre três jovens compositores modernos, insuspeitos e fraternos em suas convicções artísticas e existenciais.

Reiterando meus argumentos acerca da dimensão de desbunde e de “drop out” representada pela trajetória do trio Sá, Rodrix e Guarabyra, uma tese de doutorado defendida pelo historiador Victor Henrique Resende na Universidade Federal de São João Del Rey (MG), intitulada , apresenta um curioso infográfico, que secciona os temas das 12 composições de Passado, Presente e Futuro em três categorias.

Segundo a análise acadêmica de Resende, duas delas tratam de “críticas ao modo de vida na modernidade e/ou à ditadura”; oito abordam “elementos de trânsito” (entre) “campo e cidade; e/ou valorização do campo”; e as duas finais tratam de sons “bucólicos, românticos e outros sons”.

Ouvindo o álbum faixa a faixa, identificar as composições catalogadas por Resende a partir da análise das letras não é trabalho que demande muito esforço. Interpretações acadêmicas a parte, o que vale mesmo é se deleitar com o psicodelismo de pérolas como Juriti Butterfly (de autoria dos três), com o rock urgente da riponga Ama Teu Vizinho (de Sá e Rodrix), com a construção stoneana de Hoje Ainda é Dia de Rock (Rodrix), a  melancolia agreste de Cumpadre Meu (Guarabyra), ou, ainda, com o lirismo beat de Primeira Canção da Estrada (também de autoria dos três).

Antes de chegar a um precoce fim em 1974, o trio lançou um segundo álbum. Tão inspirado quanto seu antecessor,  (1973) traz clássicos como Mestre Jonas, Blue Riviera, Adiante e Pindurado no Vapor. Como bem sabemos, depois da ruptura, Sá e Guarabyra seguiram adiante e fizeram sucesso como dupla.

Rodrix, diferentão como sempre foi, preferiu partir em carreira solo, também com grandes êxitos, e assinou trilhas sonoras memoráveis, como as dos filmes  (de Alcino Diniz, 1975) e  (de Carlos Imperial, 1976), além de colaborações, como a que fez com o grupo Joelho de Porco, sem contar as dezenas de jingles publicitários consagrados com a marca inconfundível de seu talento.  Hoje, aliás, faz exatos cinco anos que Zé partiu, aos 61 anos, vitimado por um infarto fulminante. Nossas reverências a esse grande compositor brasileiro.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Reportagem originalmente publicada no site da revista Brasileiros em 22.5.2014

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Ouça, na íntegra, o álbum Passado, Presente, Futuro

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