Brasileiros

O valor da palavra

Opinião - Deriva

Peter Pelbart
Publicado em: 24/08/2017 - 18:58Alterado em: 28/08/2017 - 12:48
Convenção do Partido Nazista em Nuremberg, em 1935 (Foto: Reprodução)

Durante a ascenção do nazismo Viktor Klemperer  anotou minuciosamente em seu diário as inflexões que via aparecerem no discurso à sua volta. E insistiu no seguinte: o nazismo não inventou um léxico novo, mas foi alterando o valor das palavras e sua frequência. A partir de elementos tóxicos, minúsculas doses de arsênico que cada um engolia sem perceber, como a reiteração valorativa da palavra heroísmo ou combatividade ou povo ou fanático, a língua como um todo é arrastada na direção de uma invocação sentimental e de uma nova moral.[1]

Cada discurso do Führer, por mais histérico e convulsivo que fosse, era tanto mais histórico quanto mais estivesse ambientado numa cena calculada, a arena ou estádio, as bandeirolas e os símbolos, a multidão, os ecos da multidão tendo um efeito talvez maior que as próprias palavras, numa espécie de arte de obra total, que agia pelos sentidos, pela fascinação, amplificada nos filmes ou na rádio, nos alto-falantes espalhados pelas usinas e ruas.

São outros os tempos e os trópicos: nosso presidente é um pífio e insosso marionete, orador lamentável que não enfrenta um único estádio, fugindo das vaias. A multidão a quem ele se dirige é apenas televisiva. Se não há estrela amarela, a estrela vermelha faz as vezes do racismo galopante. A aceitabilidade do golpe foi sendo construída passo a passo, onde os termos crise, crime, pedalada, reformas, corrupção, justiceiro, moralidade, lulopetismo, mensalão, petrolão, Deus, foram subrepticiamente produzindo o cenário onde um desfecho circense, porém dramático, golpeou em cheio o já desgastado mecanismo de representação. E assim veio à tona nosso arcaismo escravista aliado à mais perigosa manipulação da fé, com um juridiquês que não passa de uma máscara legalista para o mais raso tapetão a partir do qual tudo se põe à venda, do pré-sal ao parque Ibirapuera, em nome de uma gestão eficaz cuja miragem é cotidianamente lustrada com as técnicas de publicidade que se comprovaram eficazes na comercialização de detergentes e saponácios.

É mesmo difícil tomar o pulso de um momento como o nosso apenas com nossa racionalidade habitual. Seria preciso pensar em instrumentos atípicos, que medissem deslocamentos tectônicos. Charlotte Beradt, amiga de Hanna Arendt, recolheu os sonhos de trezentos alemães comuns entre 1933 e 1939[2]. Para ela essa matéria impalpável era como um sismógrafo. Enquanto transcrevia os sonhos, por precaução mudava os nomes que representassem algum perigo. Partido virou “familia”, Hitler tornou-se “tio João”, ser preso era “pegar uma gripe” etc.. Vários sonhavam apenas: “é proibido sonhar, e no entanto estou sonhando”. Sonhar com a proibição, mas no ato mesmo do sonho, transgredí-la. Já era uma forma de resistência. Um dirigente político havia anunciado, logo no início do regime: “a única pessoa na Alemanha que ainda tem uma vida privada  é aquela que dorme”. Mas a sequencia dos acontecimentos viria mostrar que nenhuma parcela de vida estava a salvo, nem a do sonho. Beradt insistiu no seguinte: os sonhos das pessoas comuns deixavam entrever mecanismos que se instalavam cotidianamente na vida de milhões de pessoas, mas que ainda não eram visíveis. Mesmo campos de concentração surgiam nos sonhos, muito antes de que fossem construídos. É apenas o início do terror, mas justamente é o momento em que essa intimidação cotidiana já vem de toda parte e vai tomando a totalidade do espaço psíquico. Como no sonho de um médico que de repente vê desaparecerem as paredes de sua casa, e ouve os alto-falantes anunciarem o decreto que proíbe a construção de paredes..  É um mundo sem exterioridade, é toda uma nova topologia que se instala, não há dentro nem fora, não há exílio, nem sequer interior, que garantisse algum refúgio, como se as casas se escancarassem a todos os ventos, as divisórias e muros caíssem, e um vento mortal varresse todos os escombros. É o mais cotidiano que bascula numa feroz desrazão, sem que nos relatos pareça haver nada de anormal. É a lógica assinalada por Arendt para um regime totalitário: ninguém deveria espantar-se com as desventuras de um homem sistematicamente excluído do mundo. Pensemos no sonho do advogado judeu que, diante de um banco de praça que lhe está interditado, se senta sobre uma lata de lixo e pendura sobre si um cartaz que diz: se necessário, cedo lugar aos papéis amarrotados[3]. É Beckett puro. Mas o historiador vê nesses sonhos um alerta, a premonição política, o prognóstico que antecipava o que naquele momento ainda parecia inverossímil. É todo o mistério, de uma desmedida pressentida que extrapolava os recursos expressivos disponíveis, precisando, portanto, enunciar-se na linguagem da sobriedade, onde o espantoso é despojado de espanto, ou como em Kafka, onde o mais espantoso é que o espantoso não espanta mais ninguém. É a solução “realista”, seja ela defensiva ou cômica, diante do absurdo – a descrição neutra, quase displicente, sem pathos. Tal contraste entre o tom da descrição e seu conteúdo só nos dá, ainda mais fortemente, a medida da desmedida aí em jogo, se assim podemos nos expressar. É o que nos ocorre hoje ao ler ou ouvir qualquer noticiário, e constatar que cada ato, decisão, discurso, votação, em todas as instâncias da República, vinda do mais desconhecido vereador ou prefeito até os tribunais superiores e sobretudo o supremo chefe da Nação, reveste a violência que carrega da mais despudorada naturalidade. Nesse mundo de Alice, votar contra a investigação de um presidente, acobertando os crimes do chefe de uma quadrilha, é defender o progresso, a estabilidade, o direito dos desempregados, o futuro do Brasil cujo desmonte esse mesmo presidente se encarrega de levar a cabo.

Tão impensável quanto o que ocorre hoje é o seu avesso, a irrupção de uma revolta. Como o notou Furio Jesi, um dos mestres de Agamben, ao indicar o fascínio que exerceu sobre Rimbaud a Comuna de Paris: “A palavra revolução designa corretamente todo o complexo de ações a longo e a curto prazo realizadas por quem está consciente de querer mudar, no tempo histórico, uma situação política, social, econômica, e elabora os próprios planos táticos e estratégicos considerando constantemente no tempo histórico as relações de causa e efeito, na mais longa perspectiva possível. Toda revolta pode, ao contrário, ser descrita como a suspensão do tempo histórico. A maior parte daqueles que participam de uma revolta escolhem empenhar a própria individualidade numa ação de que não sabem nem podem prever as consequencias. No momento do confronto, apenas uma pequena minoria está consciente do desenho estratégico completo em que o confronto se coloca (se é que esse desenho existe), como de uma precisa, ainda que hipotética, concatenação de causas e efeitos. No confronto da revolta decantam-se os componentes simbólicos da ideologia que pôs a estratégia em movimento, e apenas aqueles são de fato percebidas pelos combatentes. (...) A batalha entre bem e mal, entre sobrevivência e morte, entre sucesso e fracasso, entre adultos e diversos (ele, Rimbaud, era um diverso), em que cada um está a cada dia empenhado de modo individual, identifica-se com a batalha de toda a coletividade: todos têm as mesmíssimas armas, todos enfrentam os mesmíssimos obstáculos, o mesmíssimo inimigo, o inimigo de sempre. Todos experimentam a epifania dos mesmíssimos símbolos ..[e se tornam] o espaço simbólico comum a toda uma coletividade, o refúgio do tempo histórico em que toda uma coletividade encontra salvação” [4].

Talvez soe estranho evocar essa referência poética, justo num momento tão grave, que suscita tamanho estupor, e que requer, ao invés de poesia, dirão os críticos, análises, cálculos, estratégias, avaliações, revides concretos, máquinas de guerra eficazes, organização. Mas estarão esses dois planos tão dissociados? Recentemente Brian Massumi, no rastro das revoltas estudantis em Montreal há alguns anos atrás, empreendeu uma análise poderosa dessa interface. A originalidade de sua análise consiste em dizer que seja lá por onde flui o capital, ele age num nível infraindividual que ele modula, por assim dizer, afetivamente, antes mesmo que qualquer forma de vida emerja ou tome forma. Esse nível diz respeito a flutuações do desejo, ou seja, medo, esperança, interesse pessoal, simpatia, tensionamentos para a ação, acomodamentos. O capitalismo não cessa de modular esses planos, operando num nível mais elementar do que o indivíduo, no infraindividual, infrahumano, que Deleuze chamaria de dividual. Não indivíduos, mas dividuais, ali onde as inflexões de potencial ainda estão em aberto. E Massumi emparelha diretamente esse nível infraindividual com o nível transindividual, que é a rede planetária que escapa completamente ao controle individual e até nacional.

Conclusão: Há um desencontro fundamental entre esse regime e a democracia liberal. “A democracia liberal é embasada ostensivamente na inviolabilidade pessoal do sujeito de direito individual, o cidadão acauteladamente envolto na inviolabilidade soberana do estado individual. A democracia liberal só sabe trabalhar nestas duas escalas de individualidade: o cidadão consumado e o estado soberano (nenhuma das quais durará por muito tempo). A sua estratégia de aproximação é o mecanismo da representação. Foi esse mecanismo que degringolou. A representação morreu — se é que algum dia esteve realmente viva. Quem é que se sente, hoje, verdadeiramente representado por seu governo eleito? Testemunha disso é, mundo afora, o êxodo em relação aos partidos estabelecidos. O resultado é uma dispersão simultânea da esquerda e da direita... O mecanismo da representação é obsoleto.” E a instabilidade que ele tenta domar emerge por todos os lados. É assim que as “marés afetivas sobem e descem. Em tempos de cheia, elas prefiguram movimentos ulteriores emergentes, distantes-do-equilíbrio, cuja direção é cada vez mais imprevisível. A representação está jogada às traças.” Mas paradoxalmente, “a política baseada no plano desse afeto pode dar origem a formas radicalmente inclusivas de democracia direta. Vislumbres prefigurativos daquilo que poderia ter sido visto nos movimentos espontaneamente auto-organizados dos anos 2010 [Massumi se refere às revoltas estudantis no Canadá], com seu poder de contágio para além das fronteiras da identidade. Nada emergiu como modelo definitivo. Mas há algo se revolvendo. As políticas por vir provavelmente não terão modelo definitivo, por força do movimento transformativo. Nem um modelo sequer, mas muitas matrizes relacionais, em ressonância e interferência.”

No rastro dessas observações, é impossível, hoje ainda, ficar indiferente à força, aos ecos e efeitos provenientes de 2013. Talvez o que as jornadas de junho liberaram ainda esteja, como um espectro, à espera dos corpos políticos capazes de encarnar a energia ali eclodida, e prolongá-la em direções distintas daquela que o movimento tomou em virtude da apropriação da mídia e da direita institucional. Quem sabe se a reação violenta a que assistimos desde então, vinda das forças mais retrógradas, e que vão da intolerância diante do resultado da última eleição presidencial até o tsunami de medidas draconianas tomadas desde o golpe, não seja em parte uma reação descomunal ao que em 2013 se destampou, ao perigo que ali se vislumbrou. Como se contra o gênio multitudinário temível que escapou da garrafa em 2013, e que transbordou todos os limites até então vigentes, fosse preciso usar dos recursos mais brutais e terroríficos, rompendo todos os limites na direção contrária. Uma coisa me parece certa: uma certa esquerda parece não ter aprendido nada daquele movimento. Ela voltou ao seu rame-rame institucional. E qualquer estratégia que ignore os diques que ali se romperam, e a desmedida que desde então vivemos, para o mal e para o bem, está condenada a nos devolver aos impasses que através daquele movimento se escancararam.


[1] Victor Klemperer, LTI, la langue du IIIe Reich, Albin Michel, Paris, 1996. P. 40.

[2]  Charlote Beradt, Rêver sous le IIIe Reich, Payot&Rivages, 2004.

[3] Idem, p. 161.

[4] Furio JESI, Leitura do “Bateau ivre” de Rimbaud, in Outra travessia, Revista de Literatura n 19, Santa Catarina, 2015, trad. Fernando Scheibe e Vinícius Honesko, p. 69.

Tags: 
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