Página B - Brasil

Na última quarta-feira (13), os guarani ocuparam a sede do Pico do Jaraguá, em São Paulo. Leia a reportagem que fala sobre a luta histórico do povo guarani pela demarcação de suas terras:
“Minha avó costumava falar que homem branco não tem palavra, por isso inventou o papel. Mesmo com o papel, não consegue cumprir com a palavra. Eles escrevem a lei e não cumprem com o que escreveram. Isso é algo triste pra nós. É uma situação muito complicada que a gente vive hoje”, reflete Thiago Karai Jekupe, uma das lideranças guarani da Aldeia Tekoá Piau, no pico do Jaraguá, zona norte de São Paulo.
A revolta de Thiago vem de uma recente decisão do Ministério da Justiça, publicada no dia 21 de agosto, que retirou dos indígenas 532 hectares de terra de seu território. A ação foi tomada pelo ministro Torquato Jardim, empossado por Temer, que derrubou uma portaria de 2015 que regularizava a Terra Indígena do Jaraguá.
A área foi reconhecida em 1987 com 1,7 hectares, a menor Terra Indígena já demarcada no Brasil. Em 2015, após muita pressão, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinou uma portaria que expandia o território dos guarani, mas que agora deixa de valer com a decisão do novo ministro.

Com a anulação, indígenas de diferentes regiões de São Paulo foram até a Avenida Paulista e ocuparam a sede da Presidência da República na última quarta-feira (30), exigindo que a Justiça volte atrás e reconheça a área como local de ocupação tradicional dos guarani.
Atualmente, as mais de 700 famílias que vivem nas aldeias do Jaraguá estão espalhadas por uma região maior do que a demarcada. A comunidade não conta com saneamento básico e, com a falta de espaço, não consegue plantar seu alimento. Apesar de algumas hortas, a maioria dos suprimentos são comprados ou vêm de doações.
Para entender melhor a situação dos guarani em São Paulo, o páginaB! ouviu duas lideranças indígenas da região, Thiago e Sônia Ara Mirim, que também é moradora da Tekoá Piau.
ONDE ESTAVAM OS GUARANI
“O pico do Jaraguá é um ponto de São Paulo que sempre foi usado de uma forma geográfica, por ser um dos pontos mais altos do município. Os povos guarani, guarani Nhandeva, guarani Mbya [variações linguísticas da etnia], sempre que precisavam fazer sua migração para o litoral, utilizavam o pico do Jaraguá como ponto de referencia”, explica Thiago, que também integra a Comissão Gurani Yvyrupa, organização formada pelos indígenas para defender deus direitos.

Parte da dificuldade de se reconhecer o território dos guarani vem das características culturais do povo, que tradicionalmente se organiza de forma nômade, percorrendo vastos territórios. Os guarani de São Paulo, por exemplo, costumavam transitar por uma região que se extende até a faixa litorânea da região sul do Brasil. “Era um território vasto. Os guaranis vinham desde a Argentina, tem guarani no Paraguai”, diz Sônia.
“Como não existiam fronteiras na época da invasão, esse território era livre para eles fazerem suas roças, fazerem suas aldeias. Mas o território foi ficando pequeno e o governo foi cada vez tirando mais. Primeiro na época da colonização, depois na época da ditadura militar.”

De acordo com a Funai, existe documentação que comprova a presença dos indígenas na região desde o século 17. Agora, os guarani de São Paulo assistem a mais um capítulo do atropelo de seus direitos com a anulação de uma área que já havia sido reconhecida pela Justiça. A situação se agrava com a pressão do governo estadual para que o território não se consolide como Terra Indígena. A região habitada pelos guarani sobrepõe o Parque Estadual do Jaraguá, um dos parques que compõe o programa de privatizações do governo do estado e a presença dos indígenas conflita com os interesses da gestão do governador Geraldo Alckmim.
Thiago critica o cerco encampado pelas diferentes instâncias de governo. Para ele, tanto Temer quanto Alckmim vem agindo contra os povos indígenas e, principalmente, contra a Terra Indígena do Jaraguá. “A Constituição de 1988 dizia que tem que demarcar não só a área onde a comunidade tem sua casa e vive, mas toda a ocupação tradicional: onde você pega argila, matéria prima, caça, pesca. Onde você faz a sua vivência cultural. Isso não foi feito aqui”, questiona o indígena.
O Movimento Passe Livre foi quem deu o empurrão inicial. A gente precisava de alguém para nos orientar a como fazer um ato, porque até então ninguém tinha feito.
A JORNADA DE MOBILIZAÇÕES INDÍGENAS
O ano de 2013 é lembrado pelas grandes mobilizações de rua que tomaram o Brasil. A data, entretanto, também foi marco na mobilização e articulação dos povos indígenas da capital paulista. Na ocasião, um processo de reintegração de posse havia sido movido contra os guarani do Jaraguá. Na onda das manifestações que vinham sendo encampadas pelo Movimento Passe Livre, a comunidade decidiu também tomar as ruas.“Soubemos [do processo de reintegração] e percebemos que era preciso fazer alguma coisa. Mas de que forma? A gente não sabia”, relembra Sônia.
Ela conta que com a notícia da reintegração a comunidade se desesperou e passou a procurar formas de resistir e permanecer na terra. “O Movimento Passe Livre, foi quem deu o empurrão inicial. A gente precisava de alguém para nos orientar a como fazer um ato, porque até então ninguém tinha feito. Eles vieram e explicaram para a gente fazer assim, fechar a Rodovia dos Bandeirantes… A gente ja queria fazer isso, mas não sabia como.”
Ainda que o processo de reintegração só tenha sido anulado em 2015 pelo STF, a tomada da Bandeirantes ficou gravada pelos guarani como um ponto simbólico de virada. “Ali começou tudo. A gente criou força, se sentiu mais forte. Vimos que a gente consegue.”
No processo de conquista de protagonismo na luta, os guarani passaram a buscar outras formas de se defender dos ataques contra seu território. Uma das iniciativas foi o fortalecimento da Comissão Gurani Yvyrupa, que existe desde 2007 e da qual Thiago faz parte. “Ela foi criada pelos povos guarani para ter uma forma, uma organização social para se defender. Hoje, a gente tenta aprender um pouco da lei do jura [forma que os guarani se referem aos não índios] para poder se defender”, explica Thiago.
A comunidade indígena atrapalha o lucro, porque índio não dá dinheiro pro governo. É por isso que tem tanta perseguição. Não só com os povos indígenas, mas contra os ribeirinhos, os quilombolas, os caiçaras...
O levante dos indígenas de São Paulo coincide com o aumento da participação de comunidades indígenas de todo o Brasil em manifestações e na pressão sobre temas nacionais. O exemplo mais emblemático desta reviravolta é o Acampamento Terra Livre, que em abril de 2017 chegou na sua 14ª edição. O evento acontece anualmente na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e conta com a presença de milhares de lideranças indígenas de diferentes regiões do país. A ideia é unificar as reivindicações dos povos e pressionar o governo federal para uma agenda positiva aos indígenas.

“Hoje, nós estamos bem mais unidos. Lógico que a gente não consegue sair daqui e ir lá para a Amazônia, pro Acre, para Roraima. Mas a gente está em contato, se fala por celular. O meu celular mesmo, eu ando com ele sempre comigo, porque eu recebo mensagem do pessoal que está no Acre, de parentes que estão em outros países, em outras regiões”, afirma Sônia, que entende que a comunicação pelos meios digitais fortaleceu a luta dos povos indígenas.
“Tem gente que fala: ‘Ah, eles não são mais índios porque eles andam com o celular. Mas eles não sabem para que que serve o celular. Eu não fico no Facebook mandando joguinho. Eu tenho que falar sobre luta, ficar atenta ao que está acontecendo no pais.”
Ainda que as mobilizações indígenas tenham se intensificado nos últimos anos, Sônia mantém o tom de desconfiança com as instituições e percebe a dificuldade de mudar efetivamente o quadro dos indígenas no cenário nacional. “A gente andou muito, mas parece que a gente deu só dois passos”, reflete.
“É muito devagar as coisas. O rio que passa aqui continua poluído. Na aldeia a gente tem o posto de saúde, tem a escola, mas a situação da saúde ainda é precária, as crianças ainda morrem desnutridas. Aqui em São Paulo o Geraldo Alckmim fala que o parque é dele. Ele não quer saber se tem índio aqui ou não. Mas porquê? Porque tem lucro. Lucra com as pessoas que vem visitar, a região cresce, o comércio vem. A comunidade indígena atrapalha isso, porque índio não dá dinheiro pro governo. É por isso que tem tanta perseguição. Não só com os povos indígenas, mas contra os ribeirinhos, os quilombolas, os caiçaras… Eles estão em locais que tem concentração de minerais, qua as águas estão protegidas, onde há cachoeiras e nascentes.”
Um estudo do Word Resources Institute (WRI) publicado em 2016 constatou que as taxas de desmatamento em áreas florestais indígenas eram 2,5 vezes menores do que em outras regiões. O Boletim Transparência Florestal de 2014 também sinalizou para esta direção. De acordo com o levantamento, o índice de desmatamento nas Terras Indígenas em junho daquele ano foi de 1% contra 59% em áreas privadas.
Para Sônia, basta os brancos entenderem: “Eles estão matando a si próprio. O mundo é um só. O caviar deles vem de onde? Mandaram fazer numa máquina? Só se inventaram uma máquina de fazer caviar para parar de usar os peixes.”