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Poder para a arte preta

Arte

artes visuais - exposição

Em cartaz no Galpão VB, em São Paulo, a mostra "Agora Somos Todxs Negrxs?" reúne trabalhos de 15 artistas. Com predominância de vídeos e vídeo-performances, a coletiva expõe e confronta a baixa visibilidade da produção de artistas negros
Marcelo Pinheiro
Publicado em: 31/08/2017 - 16:51Alterado em: 31/08/2017 - 17:42
O bailarino e performer Luiz de Abreu apesenta a peça performática "Samba do Crioulo Doido". Foto: Reprodução do filme homônimo

Em tempos de recrudescimento do ódio étnico, religioso e racial, confrontar os mecanismos que mantém as diversas formas de preconceito na esfera de uma suposta normatividade tem sido missão inadiável não só para ativistas e militantes, mas também para criadores das mais diversas linguagens artísticas.

Afinal, a constatação de que passamos por um momento de ascensão da intolerância é inquestionável, seja no Brasil de Michel Temer (onde, a despeito de uma suposta democracia racial, mais de 70 jovens negros, entre 15 e 29 anos, são assassinados diariamente) ou nos Estados Unidos de Donald Trump (onde o fascismo de extrema-direita, atenuado com o conceito eufemístico de “supremacia branca”, foi escancarado com o atentado ocorrido em Charlottesville, na Virgínia).

Historicamente, no meio cultural, as reivindicações e reflexões sobre a realidade da negritude foram majoritariamente expressas por meio da música. Basta lembrar que, nos anos 1960, durante a luta dos negros norte-americanos por igualdade de direitos civis, o jazz foi o mais importante difusor do pensamento antissegregacionista de artistas como o saxofonista John Coltrane, a cantora e pianista Nina Simone, o contrabaixista Charles Mingus e o baterista Max Roach, autor do clássico álbum-manifesto We Insist! – Freedom Now Suite.

Fenômenos assemelhados de ativismo coletivo no ambiente das artes visuais são até hoje, no entanto, mais rarefeitos. Fato reverberado na provocação do artista Daniel Lima, curador de Agora Somos Todxs Negrxs?, ao apresentar a mostra coletiva, que reúne trabalhos de 15 artistas pretos e fica em cartaz até 16 de dezembro no Galpão VB, da Associação Cultural Vídeobrasil. “Na minha história, na de vários artistas e mesmo na história de quem tem alguma proximidade com as instituições de arte contemporânea quase todas as exposições podiam ter o subtítulo ‘sempre fomos todos brancos’”, comenta Lima.  

Com uma predominância de vídeos e vídeo-performances, a mostra apresenta trabalhos de artistas de diferentes faixas etárias e de vários estados do País. São eles: Ana Lira, Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Daniel Lima, Eustáquio Neves, o coletivo Frente 3 de Fevereiro, Jaime Lauriano, Jota Mombaça, Luiz de Abreu, Moisés Patrício, Musa Michelle Mattiuzzi, Paulo Nazareth, Rosana Paulino, Sidney Amaral (morto em maio deste ano, o artista terá o maior número de obras expostas, ao todo 12) e Zózimo Bulbul (morto em 2013, o ator e cineasta é reverenciado na mostra com exibições do curta-metragem Alma no Olho, de 1973, um clássico do ativismo negro no meio das artes do País).

Para Solange Farkas, curadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil e idealizadora do  Festival Internacional de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que, em outubro, chega à vigésima edição, além de exercer o papel de vitrine, Agora Somos Todxs Negrxs? tem o caráter de questionar convenções estruturais. “Existe uma produção enorme e potente de artistas que tem discursos importantes, com uma produção simbólica maravilhosa, mas que é pouco vista e que tem pouca inserção no circuito de arte. A mostra é também um lugar para mexer com esses pontos nebulosos da nossa própria cultura. É preciso dar espaço para esses artistas e coloca-los em contato com a cena que eles querem estar inseridos”, defende.

A utilização da letra x, adotada para definir a orientação não binária de gênero, nas palavras “todos” e “negros”, reverbera, segundo o curador, Daniel Lima, discussões irrecusáveis da contemporaneidade. “O uso do xis traz uma perspectiva diferente do que foi a afirmação do Movimento Negro da década de 1960 e 1970. Hoje é impossível pensar a questão negra sem também equacionar a questão de gênero. Impossível pensar essa aliança sem a ideia de resistência contra um mundo patriarcal, branco e euro-centrado, e sem equacionar a perspectiva feminina e a perspectiva não binária. O xis vem como um recurso de atualização.”

O título da mostra também faz alusão à histórica revolução liderada por Toussaint L’Overture que, após cinco anos de conflitos sangrentos, libertou os escravos haitianos do império francês de Napoleão Bonaparte em 1804. No ano seguinte, instituída a república foi concluída a constituição do novo país caribenho. No artigo 14, o documento determina:  “Todos os cidadãos, de agora em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros”.         

“Isso trouxe a perspectiva de uma aliança, dentro do conceito de negritude, de todo processo de descolonização, de os não brancos se aliarem em torno de um guarda-chuva conceitual de negritude”, explica Lima. Aparentemente irônico, o título da mostra, defende o curador, também tem proposições afirmativas:  “O ponto de interrogação do título pode ser entendido como ‘sim, agora somos todos negros’, mas nele cabe também a interpretação de que, num processo de exceção, temos uma exposição toda constituída por artistas negros. A ideia é contemplar essa nova geração, dialogar com as gerações anteriores, mas também marcar essa trama única e singular que existe hoje de artistas negros”, conclui.  

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