Brasileiros

Mostra no Sesc 24 de Maio retrata as contradições de São Paulo

Arte

Obras de referência, documentos históricos e indagações sobre o caráter excludente da cidade se combinam em exposição grandiosa
Maria Hirszman
Publicado em: 29/08/2017 - 19:45Alterado em: 05/09/2017 - 14:38
Foto de Claudia Andujar, exposta no Sesc 24 de Maio

Nada mais adequado do que dedicar a exposição inaugural do Sesc 24 de Maio a São Paulo. Afinal, a criação de uma nova e potente instituição cultural no coração da cidade não apenas contribui para revitalizar um centro problemático, mas também serve de abrigo para uma produção cultural extremamente fragilizada pela ausência de políticas públicas.

O novo prédio, que recuperou as antigas instalações da Mesbla, acaba por dar visibilidade às permanentes crises que atravessam São Paulo de alto a baixo, em seus diferentes tempos históricos. Instabilidade e precariedade são termos incontornáveis quando se trata de discutir a metrópole e tornam-se centrais na mostra concebida por Paulo Herkenhoff e Leno Veras a convite do Sesc. Ao invés de tentar recontar visualmente uma narrativa histórica e linear, a dupla de curadores acabou trazendo o aspecto caótico dessa urbe para dentro da exposição e criou uma mostra tecida por um conjunto amplo de temas condutores, que se sobrepõem numa trama que não se pretende esclarecedora, mas problematizadora.

A opção por não escamotear os problemas já fica evidente no próprio título, São Paulo não é uma cidade, grafado em neon vermelho no centro do espaço. Inspirada num texto do filósofo Vilém Flusser (para quem São Paulo não passaria de um “conglomerado urbano"), a afirmação encara de frente o caráter pouco "público" da cidade  e são exatamente os trabalhos que se debruçam sobre essas contradições que constituem os pontos altos da mostra.

A exposição tem cerca de 20 núcleos, com tamanhos e vocações bastante distintas, que abraçam o átrio central onde estaria representada a fundação do município com uma réplica idêntica do marco zero. Os próprios curadores definem a mostra como uma espécie de almanaque, no qual se articulam um amplo e heterogêneo conjunto de itens, organizados a partir de critérios distintos. Sinteticamente, é possível dizer que "São Paulo não é uma cidade" reúne dois universos paralelos, que se entrecruzam: de um lado estão as obras que narram o que podemos chamar de "história oficial” e, de outro, um conjunto de trabalhos contemporâneos que questionam, provocam, indagam e problematizam vários aspectos da vida urbana.

No primeiro bloco estariam os núcleos que ora descrevem características urbanas, ora se debruçam sobre aspectos sociais ou culturais. Representam diferentes períodos econômicos – como as Bandeiras e a era do café –; enfatizam pontos marcantes da paisagem – como o vale do Anhangabaú e a estação da Luz –; ou ainda comentam seus períodos culturais mais emblemáticos, como a Semana de 22 e o concretismo. Dentre as figuras mais proeminentes, projetam-se as personalidades icônicas de Mário de Andrade (o mais ostensivamente celebrado, tanto por sua importância pessoal, como pela vasta coleção que formou), Oswald de Andrade, Ramos de Azevedo e Flávio de Carvalho.




Foto de Felisberto Ranzini, da coleção de Ruy Silva e Souza, exposta no novo Sesc

O tipo de material exposto também é bastante eclético, indo de elementos simples como terra, réplicas de monumentos, reproduções de material jornalístico até obras clássicas da arte e da iconografia brasileiras, como um conjunto precioso de fotografias oitocentistas cedidas pelo colecionador Ruy Silva e Souza e pinturas emblemáticas da arte brasileira, pertencentes a museus importantes como o Museu Nacional de Belas Artes, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Lasar Segall e a Pinacoteca do Estado. No total, são mais de 400 itens, cuja apreciação exige tempo e escolhas muito claras por parte do espectador, já que a montagem um tanto caleidoscópica não estabelece roteiros claros, oferecendo uma gama muito ampla de caminhos e possibilidades de fruição. A grandiosidade do espaço – com cerca de 1,3 mil metros quadrados –, uma grande quantidade de colunas estruturais e o pé direito elevado contribuem para esse aspecto um tanto labiríntico da exposição.

Talvez exatamente por esse excesso de informações é que parecem sobressair-se no trajeto aqueles trabalhos que vão além da mera descrição ou documentação dos fatos, aquelas obras que não apenas complementam essa narrativa plural – geográfica, econômica e artística – dos fatos mais comumente ligados à história de São Paulo, mas que refletem ou se posicionam em relação a ela. São intervenções, em sua maioria mais recentes ou comissionadas (o que gera a impressão de que esse novo espaço é vocacionado para abrigar a produção contemporânea mais recente), que questionam aspectos menos visíveis da trajetória da metrópole, como o permanente processo de destruição e reconstrução da cidade promovido por uma eterna busca de “modernidade”.

Um dos núcleos que se destaca nesse tipo de questionamento é aquele dedicado ao embate natureza x cultura urbana, personificado na obra Sofá mata a dentro, de Rodrigo Bueno, um decadente móvel burguês que vai pouco a pouco sendo tomado pela natureza.

A intervenção de Jaime Lauriano, um dos poucos trabalhos comissionados pela exposição e que ainda está em processo, coloca o dedo em uma ferida bastante sublimada, mas não por isso menos dolorida: o processo de apagamento da memória da escravidão numa localidade extremamente marcada por processos de exclusão, higienização e destruição de sua própria memória. Vias, de João Paulo Racy, mostra na prática como se dá essa violência ao exibir em looping a tentativa fracassada de implosão de uma construção na Favela do Moinho.

O acirramento das tensões sociais e a intolerância crescente também estão presentes na impactante instalação Odiolândia, de Giselle Beiguelman. De uma simplicidade contundente, a artista alinha uma sequência de declarações fóbicas, coletadas nas redes sociais, nas quais fica evidente a absoluta intolerância em relação aos dependentes. O processo de coleta e articulação de vestígios também está na base do trabalho de Igor Vidor, que denuncia a permanência de hábitos de tortura pelas forças da ordem, criando um grande painel com resíduos de vestimentas abandonadas por menores de rua perseguidos pela polícia em bairros centrais da cidade.

Serviço - São Paulo não é uma cidade - invenções do centro

Até  28/01/2018

Sesc 24 de Maio

Rua 24 de Maio, 109 - Centro, São Paulo.

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sesc
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