Opinião
Coluna - Seis Sentidos

O piano chegou em casa na manhã brumosa daquele Yom Kippur*, há 77 anos. Um presente do pai pelo seu décimo aniversário.
À noite eles arrombaram a porta e fraturaram sua alma. Fratura exposta com infecção recorrente pelos seguintes dez meses, a cada estupro do comandante. "Toca antes a tua música". Rápida inspeção e o abate. De olhos fechados fechava todos os poros. Abortava os gritos.
Levaram a família para o campo de concentração mas deixaram a menina e o piano. Ela serviria duplamente ao gosto duvidoso dos monstros invasores. E carregaria para sempre o peso das vidas mal vividas.
Exilou-se numa desajeitada São Paulo, com ajuda da tia e o fim da guerra. Conseguiu levar o piano. Fez família e muitos amigos.
Diariamente, de manhã e à tardinha, ela tocava seu generoso repertório, e todos a elogiavam por trazer música à vizinhança.
Não sabiam que era coisa de vida ou morte.
Ela morreu no mês passado.
O neto doou o instrumento para a escola. O diretor pediu para que o piano ficasse disponível a quem se sentisse seduzido por sua imponência, na recepção, assim, dando sopa, para qualquer um tocar e ouvir sua música, apesar da resistência de um grupo de professores descontentes. Acreditavam que atrapalharia o ambiente que ali já era atrapalhado, no bom sentido.
Desde então cinquenta e três pianistas - crianças, jovens e educadores - costumam abrir a tampa de madeira esculpida e dobram caprichosamente a longa faixa de feltro verde que o protege, incansável, da poeira da rua e do tempo.
Uma placa de pano bordada à mão, de autoria desconhecida, feito batuta de maestro, define o tom: FAVOR TOCAR com carinho e respeito.
* O Dia do Perdão, considerado uma das mais importantes datas do judaísmo.