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Opinião

Coluna - Seis Sentidos

“O piano chegou em casa na manhã brumosa daquele Yom Kippur*, há 77 anos. Um presente do pai pelo seu décimo aniversário. À noite eles arrombaram a porta e fraturaram sua alma.”
Auro Lescher
Publicado em: 21/09/2017 - 15:21Alterado em: 21/09/2017 - 15:28
Foto: Flávio Magalhães

O piano chegou em casa na manhã brumosa daquele Yom Kippur*, há 77 anos. Um presente do pai pelo seu décimo aniversário. 

À noite eles arrombaram a porta e fraturaram sua alma. Fratura exposta com infecção recorrente pelos seguintes dez meses, a cada estupro do comandante. "Toca antes a tua música". Rápida inspeção e o abate. De olhos fechados fechava todos os poros. Abortava os gritos. 

Levaram a família para o campo de concentração mas deixaram a menina e o piano. Ela serviria duplamente ao gosto duvidoso dos monstros invasores. E carregaria para sempre o peso das vidas mal vividas. 

Exilou-se numa desajeitada São Paulo, com ajuda da tia e o fim da guerra. Conseguiu levar o piano. Fez família e muitos amigos.

Diariamente, de manhã e à tardinha, ela tocava seu generoso repertório, e todos a elogiavam por trazer música à vizinhança.

Não sabiam que era coisa de vida ou morte. 

Ela morreu no mês passado.

O neto doou o instrumento para a escola. O diretor pediu para que o piano ficasse disponível a quem se sentisse seduzido por sua imponência, na recepção, assim, dando sopa, para qualquer um tocar e ouvir sua música, apesar da resistência de um grupo de professores descontentes. Acreditavam que atrapalharia o ambiente que ali já era atrapalhado, no bom sentido.

Desde então cinquenta e três pianistas - crianças, jovens e educadores - costumam abrir a tampa de madeira esculpida e dobram caprichosamente a longa faixa de feltro verde que o protege, incansável, da poeira da rua e do tempo.

Uma placa de pano bordada à mão, de autoria desconhecida, feito batuta de maestro, define o tom: FAVOR TOCAR com carinho e respeito.

* O Dia do Perdão, considerado uma das mais importantes datas do judaísmo.  

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