Brasileiros

Elis Regina, segundo Cesar Camargo Mariano

Cultura - Música

Nos 36 anos da partida da cantora, o compositor, arranjador e produtor radicado nos EUA fala sobre a intimidade artística entre ele e a saudosa Pimentinha
Marcelo Pinheiro
Publicado em: 19/01/2018 - 12:08Alterado em: 06/02/2018 - 19:01
Elis Regina visita o então marido, Cesar Camargo Mariano, durante ensaio do espetáculo São Paulo.Brasil que resultou no álbum de mesmo nome, um dos mais cultuados da discografia de Cesar  (foto: Hélio Campos Mello)

Destaque da edição 2015 do festival Música em Trancoso  e, desde o início, um dos curadores de duas das oito noites do evento realizado na idílica cidade do litoral Sul baiano  o pianista, compositor, arranjador e produtor Cesar Camargo Mariano concedeu extensa entrevista à reportagem de Brasileiros. A íntegra da conversa será publicada em nossa edição 93. No entanto, antecipamos hoje parte do conteúdo para celebrar a memória da cantora Elis Regina, sua ex-mulher, que partiu há exatos 36 anos, em 19 de janeiro de 1982.

Radicado nos Estados Unidos desde 1994, há mais de cinco décadas Cesar mantém extensa e renomada carreira autoral, liderando grupos como Sambalanço Trio e Som Três  artífice de luxo da fase mais popular de Wilson Simonal , em álbuns solo e de duetos com outros grandes artistas, como Hélio Delmiro, Nelson Ayres e Romero Lubambo. Claro, seu nome também estará indissociavelmente ligado à trajetória de Elis, nos arranjos e produções de uma série de álbuns e espetáculos históricos, como Falso Brilhante, Transversal do Tempo e Saudade do Brasil.

Durante a conversa aprazível de quase três horas, realizada na pousada em que Cesar esteve hospedado, o pianista defendeu que, como os filhos, a cantora Maria Rita e o cantor Pedro Mariano, é a favor da liberdade de expressão para os biógrafos do País. O comentário veio a propósito da recém-lançada biografia Nada Será Como Antes (editora Master Books), do jornalista Julio Maria, que, segundo Cesar, teve passe livre para pesquisar e esmiuçar livremente os temas que pretendia abordar sobre a trajetória luminar da saudosa Pimentinha. No entanto, apesar de reprovar o cerceamento imposto por artistas como Roberto Carlos, sensato, Cesar demonstrou indignação com abordagens que enviesam sempre por questões polêmicas, como a trágica morte de Elis.

A seguir, ele também revela porque, apesar de ainda compor com frequência, preferiu deixar em segundo plano a carreira autoral para privilegiar o papel de produtor e arranjador.   

Brasileiros – Em 2011 foi publicada sua autobiografia, Solo – Memórias de Cesar Camargo Mariano. Mesmo longe do País, você deve saber das polêmicas envolvendo a publicação de biografias por aqui. O que pensa sobre isso?

Cesar Camargo Mariano – As biografias são mais que necessárias. Defendo que elas têm de existir cada vez mais, mas devo admitir: às vezes, fico chateado porque em alguns filmes, documentários e cinebiografias os personagens são abordados sem a menor propriedade. Muitos vêm me perguntar sobre as coisas que foram feitas sobre a Elis. Geralmente respondo: “Não li, não vi e não quero saber”. Digo isso, não por que eu queira agir na base do “não vi e não gostei”. Pelo contrário. A questão é: no caso da maioria das coisas feitas sobre ela, não quero nem saber no que resultou porque fui abordado antes da obra ser feita, e a própria abordagem me dá uma visão do que virá pela frente. As pessoas vêm me pedir depoimentos sobre ela e os assuntos recorrentes são nosso casamento e drogas, e não a nossa relação artística. Mesmo assim, insisto que as biografias tem importância histórica e são da maior importância. Elas têm de existir até mesmo para manter preservada a imagem do artista, pois, no caso da música, nem sempre os discos são tão perenes quanto uma biografia.

A propósito, você fez alguma ressalva ao trabalho do Julio Maria, jornalista que acaba de publicar a segunda biografia da Elis, Nada Será Como Antes?

Ressalva é uma coisa, e posso tê-las, mas cerceamento e proibição são coisas que eu nunca vou defender. Censurar o trabalho do Julio é algo que eu e os meninos (Pedro e Maria Rita) jamais faríamos. Agora, concordar com tudo que as pessoas escrevem, ou não, é outra coisa. Em 2008, o Nelson Motta mandou para mim o trechinho de um filme que ele ajudou a produzir para a Rede Globo sobre a Elis (o especial Por Toda Minha Vida). Nós nos conhecemos desde moleque e sempre gostamos das mesmas coisas: curtimos as mesmas músicas, os mesmos filmes, os mesmos livros e as mesmas peças de teatro. Sempre tivemos grande afinidade. No trecho do filme que ele veio me mostrar havia uma cena que ele comentou: “Você não acha legal essa cena?”. Disse a ele: “Bicho, dramaticamente está interessante, mas não me peça para dizer se aprovo a cena, porque ela não diz a verdade”. Ele insistiu: “Eu sei que não é verdade, mas a cena vai fazer um belo gancho para a próxima. Ninguém vai perceber”. Respondi: “Ok, você é livre para fazer o que bem entender, mas não me peça aprovação. Posso até achar lindo, na hora em que eu vir o filme completo, mas não vou concordar com uma inverdade. Faça o que bem quiser”.

A valorização dramática de aspectos do personagem não pode ignorar a verdade...

Exato. É claro que a ação de um filme ou de um livro tem de empolgar as pessoas, mas calma lá... Comecei a tocar piano aos 13 anos, quando ganhei meu primeiro instrumento e meu pai teve um infarto quando me viu tocar (Miro, pai de Cesar, era músico e praticante do kardecismo, ao vê-lo tocar intuitivamente o instrumento, ele acreditou que o filho havia incorporado algum gênio da música, infartou e somente teve alta 48 dias depois). Eu poderia dramatizar isso da forma que eu quisesse. O drama é o infarto do meu pai, e é ele que enfatiza a historia, mas estou falando de uma história verdadeira. É errado e antiético criar um drama fictício para valorizar uma história e, com isso, vender mais. No caso da Elis, foram contadas muitas inverdades e mesmo as coisas que eram verdadeiras foram focadas apenas para gerar polêmica. Em minha opinião, o que dói mais é que esses estragos são irreparáveis. São essas merdas todas que vão ser sempre lembradas. Claro, existe muita gente que sabe que a Elis foi uma grande cantora. Muitos têm essa opinião formada. Mas alguém procurou saber porquê ela gravou É Com Esse Que Eu Vou (marchinha de Pedro Caetano, )? Alguém procurou saber o que passava naquela cabeça premiadíssima? Nem mesmo eu e uma porrada de gente que a conheceu de perto conseguimos entender como é que foi existir uma cabeça como a dela. Mas ninguém fala disso. Alguém sabe por que ela gravou É Com Esse Que eu Vou, uma marchinha de carnaval? Se as pessoas soubessem por que, se essa menina que está agora nos servindo café e água, a Aline, se ela soubesse disso, tudo mudaria. Fico triste porque ninguém fala disso e acho que, sim, podemos falar das coisas polêmicas, mas, por favor, vamos falar também dessas coisas. Elis foi perseguida ideologicamente por ter sido obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército, em 1972, mas quando ela gravou O Bêbado e a Equilibrista, que se tornou o hino da abertura política, ninguém foi dizer que, na coxia dos shows, havia um monte da de militares com metralhadora na mão. É Com Esse Que Eu Vou foi gravada por ela por causa de situações como essas. Lembro que estávamos em casa e ela estava na cozinha fazendo um peixe recheado. Eu trabalhava no piano, pois estava montando os arranjos do novo disco e, na cabeça dela, um disco era como um filme: deveria ter começo, meio e fim, precisava contar uma história, uma música tinha de ter afinidade com a outra. Era nesse momento que ela se tornava autora, sem tocar nenhum instrumento. Era aí que ela imprimia sua personalidade – e porque ninguém explica isso para a Aline, que é uma grande fã da Elis?!

E por que ela decidiu gravar É Com Esse Que eu Vou?

Faltava uma música para fechar o disco, e o assunto do LP era o que estávamos vivendo, a grave situação do País, naquele momento difícil da ditadura. Elis lá cozinhando o peixe, as crianças brincando, de fraldas, no chão, de repente, ela dá um grito: “Achei a música! Achei!”. E eu: “E qual é a música, Elis?”. Ela diz: “É Com Esse Que Eu Vou”. Eu respondo: “Como assim?! Uma marchinha de carnaval?!”, daí ela diz: “Você é burro mesmo, César! Você já prestou atenção na letra?! ‘É com esse que eu vou até o fim / É com esse que eu vou sambar até o fim / ... Pode vir senador, deputado’”. Ela foi recitando a letra, enfática, batendo a mão na mesa, com raiva e dizendo: “É com esse que eu vou, o Brasil, vou com ele contra qualquer um desses filhos da puta”. Então, o que é isso se não uma cabeça absurda?! Digo isso, não para falar dela como pessoa, mas como artista. Isso me emociona até hoje: a enorme competência e sensibilidade que ela tinha. Era algo muito bonito de se ver. Peço milhões de perdões, mas, hoje, não consigo achar nenhum artista que tenha essa força, e é isso que precisa ser mostrado.


Cesar reverencia o contrabaixista Sidiel Vieira, no festival Música em Trancoso

Cesar reverencia o contrabaixista Sidiel Vieira, no festival Música em Trancoso (foto: Jean de Matteis)

Você já tinha uma carreira consagrada de compositor e líder de grupos históricos como o Sambalanço Trio e o Som Três. De certa forma, suas colaborações artísticas com Elis acabaram desacelerando uma trajetória autoral das mais brilhantes. O que pensa disso?  

Na música, o coadjuvante é tão importante quanto no cinema. Ele tem de ser muito generoso, pois é fundamental para o sucesso do intérprete. Sou apaixonado por isso e é por isso que até hoje me dedico a ser arranjador e produtor. Acompanhar o artista é uma arte que não pode ser descuidada, muito menos relegada a um posto menor. O primeiro show que fiz com a Elis, em 1971, no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, tinha a direção do Ronaldo Bôscoli, que já havia se separado dela. Ela havia mudado toda a banda e o Ronaldo pediu para eu seguir com a direção artística do espetáculo. Eu sempre fui muito amigo dele e do Miéle e, segundo ele, ela só confiava em mim para assumir a direção. Ronaldo havia criado um cenário que, da metade para trás, havia tapumes cenográficos e os músicos ficavam encobertos. A banda era formada pelo Hélio Delmiro, o Paulinho Braga, o Luizão Maia e eu. No meio de um dos ensaios cismei com um acorde, chamei o Helio e disse: “Helinho, vamos trabalhar esse acorde que não está legal. Nessa hora a Elis costuma segurar mais a nota e a gente precisa encontrar uma solução para ela poder cantar dessa forma”. A conversa durou a tarde toda e o Ronaldo, impaciente, andando para lá e para cá, veio se queixar: “César, para com isso! Que obsessão é essa?! Vocês estão a tarde inteira nesse acorde, ninguém vai ouvir essa porra desse acorde, que merda é essa?! Vamos passar para outra”. Disse a ele: “Ronaldo, espera aí, bicho. Isso é muito importante”. Enquanto isso, a Elis estava alheia a tudo, num cantinho do teatro fazendo tricô, e eu disse ao Ronaldo: “Bicho, o cara que está lá no fundo, quando ouvir esse acorde perfeito, ele nem saberá disso, mas é esse acorde que vai provocar nele um arrepio no coração. Esse acorde, do jeito que eu e Helinho estamos pensando, vai fazer com que Elis sinta-se confortável na interpretação e essa emoção vai atingir o público”. A música era Atrás da Porta, do Chico Buarque. Ronaldo insistiu em dizer que eu estava maluco, mas acertamos tudo e chamei a Elis para passar a música. Quando chegou na hora do acorde, que é bem no trecho “Dei pra mal dizer o nosso lar...”, ela entoou a frase, os olhos dela se encheram de lágrimas e ela não parou de chorar. Então, ninguém sabe o que está por trás disso, mas existe uma coisa, que mexe até mesmo com os mais durões dos seres humanos: a sensibilidade. Por isso é importante não menosprezar o papel do acompanhante. Ele é como um alfaiate, um arquiteto. É ele quem procura a precisão das coisas.

Veja Elis Regina interpretar Atrás da Porta, de Chico Buarque, em um especial da Rede Bandeirantes, em 1973: 

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