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De tempos em tempos é preciso voltar a olhar para José Pancetti. Figura maior da arte moderna brasileira, autor de uma das sínteses mais belas da paisagem nacional, ele é uma espécie de figura mítica, um pintor que personifica uma grande dedicação a seu ofício e o drama romântico do artista de origem popular que, movido por suas próprias inquietações pessoais, consegue superar os limites de sua classe e alcançar o reconhecimento merecido. Se é impossível realizar uma antologia sobre arte brasileira do século XX, sem incluí-lo, ou imaginar uma coleção de porte sem que ele esteja representado, raras são as oportunidades de ver juntas uma seleção ampla de seus trabalhos, como a oferecida agora pela exposição "Pancetti – Navegar é preciso", em cartaz na Galeria Almeida e Dale.
São 45 pinturas, com destaque para as paisagens, que abrangem a produção do artista desde suas primeiras obras na década de 40, principalmente as cenas urbanas de caráter mais melancólico, cujo espectro cromático ainda é restrito, por vezes soturno, até as sintéticas cenas praianas de intenso colorido e contraste, realizadas nos anos 1950, dentre as quais destacam-se aquelas realizadas no período em que morou em Salvador e que são sua faceta mais conhecida.

José Pancetti, Itapoan Bahia, 1956
A seleção proposta por Denise Mattar, que foi também responsável pela curadoria da última grande retrospectiva do pintor, realizada em 2002 por ocasião de seu centenário de nascimento, também procura dar visibilidade à presença de outros gêneros em seu trabalho, como o retrato – com destaque para o autorretrato – e a natureza-morta. Não se trata apenas de uma reafirmação da versatilidade do artista, mas da necessidade de marcar que a sensibilidade de Pancetti não está restrita a apenas um gênero da pintura. A curadora também dedica parte da exposição aos diálogos do artista com a história da arte e com mestres como Van Gogh e Cézanne. Segundo Denise Mattar,
Seu objetivo é mostrar as questões subjacentes à sua obra: o ritmo do silêncio, o encanto do cotidiano, a emoção da cor e um lirismo agudo - quase dolorido".
Nascido em Campinas, filho de imigrantes italianos, Pancetti teve uma infância difícil. O pai, pedreiro (que trabalhou inclusive na construção do teatro Municipal de São Paulo), acaba mandando os filhos de volta para a Itália na companhia de um tio. Logo após o término da I Guerra Mundial, o jovem com então 16 anos entra para a Marinha Marcante e volta ao Brasil, onde segue a carreira de marinheiro. É ali que começa a pintar, primeiro decorando os barcos e obtendo o apreço de seus comandantes por causa de sua habilidade. Nos anos 1930, é descoberto pelo circuito oficial, passando a fazer parte, por algum tempo, do Grupo Bernardelli, associação de pintores modernistas que buscava uma alternativa ao ensino acadêmico. Os exercícios repetitivos e a falta de identidade com outros membros acabam afastando-o do grupo. Mas, desde então, passa a participar com frequência das Exposições da Academia Nacional de Belas Artes. Chega a ser agraciado com a máxima distinção em 1941 – o prêmio de viagem ao exterior – mas sua frágil saúde o impede de viajar e ele acaba trocando o prêmio por uma ajuda financeira para custear seus tratamentos médicos.
É interessante notar como, ao longo do tempo, Pancetti vai pouco a pouco adotando uma forma cada vez mais sintética de pintar, passando das representações mais realistas da paisagem para sugestões rápidas, intensamente cromáticas, que se distanciam da representação mais realista para recriar, em golpes rápidos e concisos, a sensação da paisagem.
Somam-se à cor e ao gesto ágil, uma maneira bastante precisa e particular de situar os elementos na tela. Pancetti lança mão, com frequência, de ângulos sinuosos, braços de areia que se projetam transversalmente na tela. Cria uma intensa sensação de profundidade por meio da manipulação precisa de elementos singelos como pessoas à beira-mar ou velas das embarcações. Como diz Olívio Tavares de Araújo, em citação presente no amplo catálogo da exposição, sua "qualidade mais peculiar e inconfundível é a maneira pela qual organiza as imagens no espaço".
Além dos contrastes, entre o intenso verde azulado do mar, o branco luminoso da areia e os tons variados do céu (que algumas vezes nada mais é do que uma estreita faixa violeta espremida no alto da tela), há também nas telas de Pancetti a presença constante de figuras populares, com destaque para as lavadeiras, curvadas sobre as manchas de roupa secando ao sol ou carregando fardos sobre a cabeça, repetindo assim uma das mais clássicas formas de representação do trabalho na história da arte ocidental (com destaque para a impressionante “Lenhadoras”, pintura feita em 1949 em Arraial do Cabo) e ao mesmo tempo reafirmando seu pertencimento à classe trabalhadora.